Julio Cortázar publicou, em 1962, História de cronópios e de famas, uma recompilação de 64 relatos curtos repletos de sarcasmo e ironia que escondem em suas linhas reflexões filosóficas através de uma linguagem simples e clara. A obra está dividida em quatro partes. A primeira parte, da qual vamos ver dois trechos em seguida, chama-se Manual de Instruções e é uma ridicularização de situações cotidianas e repetitivas, que nos obriga a refletir sobre atos que consideramos habituais e aos quais, normalmente, não prestamos atenção. Boa leitura.

Manual de Instruções

Júlio Cortázar
Tradução: Débora Andreza Zacharias

Instruções para cantar

Comece quebrando os espelhos de sua casa, deixe os braços caírem, olhe vagamente para a parede, esqueça. Cante apenas uma nota, escute por dentro. Se ouvir (mas isso ocorrerá muito depois) algo como uma paisagem desaparecida no medo, com fogueiras entre pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acredito que você estará bem encaminhado, assim como se ouvir um rio por onde descem botes pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um toque de dedos, uma sombra de cavalo.
Depois, compre cadernos de solfejos e um fraque, por favor não cante pelo nariz, e deixe Schumann em paz.

Instruções para chorar

Deixando de lado os motivos, vamos nos ater a maneira correta de chorar, entendendo isso como um pranto que não se transforma em um escândalo, nem que insulte o sorriso com sua paralela e lerda semelhança. O choro médio ou ordinário consiste em uma contração geral do rosto e em um som espasmódico, acompanhado de lágrimas e coriza, esses últimos ao final, pois o choro acaba no momento em que alguém assoa o nariz energicamente.
Para chorar, dirija sua imaginação para você mesmo e se isto acabar sendo impossível pelo hábito adquirido de acreditar em um mundo exterior, pense em um pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães onde ninguém entra, nunca.
Chegando o choro, tapar o rosto com decoro usando ambas as mãos com a palma voltada para dentro. As crianças chorarão com a manga do casaco contra o rosto e, de preferência, em um canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.

Fontes:
Arrieta, Soledad. “Historias de Cronopios y de Famas”, de la ironía a la cotidianidad.
Cortázar, Julio. Historias de Cronopios y de Famas. Ed. Punto de Lectura: Buenos Aires.