Essa foi uma das traduções que fiz para o trabalho de conclusão de curso da minha especialização do espanhol. O texto La muñeca reina é do autor mexicano Carlos Fuentes. Espero que vocês gostem.

A boneca rainha

Carlos Fuentes
Tradução: Débora Zacharias

I

Vim porque aquele cartão, tão curioso, me fez recordar de sua existência. Encontrei-o em um livro esquecido, cujas páginas tinham imprimidas em si um espectro de caligrafia infantil. Estava arrumando meus livros, coisa que há tempos não fazia. Ia de surpresa em surpresa, pois alguns, colocados nas estantes mais altas, não foram lidos por muito tempo. Tanto tempo que as bordas das folhas estavam desmanchando de uma maneira que derrubavam sobre as palmas das minhas mãos uma mescla de pó dourado e escamas acinzentadas, vindos do verniz que cobre certos corpos vistos primeiro nos sonhos e depois na decepcionante realidade do primeiro espetáculo de balé a que somos conduzidos. Era um livro da minha infância – e da de muitos outros meninos – e falava de uma série de histórias exemplares, mais ou menos cruéis, que tinham a virtude de nos lançar sobre o colo de nossos pais e avós para perguntar-lhes várias vezes: “por quê?”. Os filhos são mal agradecidos com seu pais, as moças são raptadas por tratadores de cavalos e voltavam para casa envergonhadas, assim como as que por vontade própria abandonavam seu lar; os velhos que, em troca de uma hipoteca vencida, exigem a mão da uma menina mais doce e desconsolada de uma família ameaçada. Por quê? Não me lembro das respostas. Só sei que das páginas manchadas caiu, girando, um cartão branco com a letra horrível de Amilamia: Amilamia não esquece seu amiquinho e me busca aqui como tá no dezenho.
E atrás estava o plano de um caminho que partia de X que deveria indicar, sem dúvida, o banco do parque onde eu, adolescente rebelde à educação prescrita e tediosa, me esquecia dos horários das aulas e passava várias horas lendo livros que, se não foram escritos por mim, poderiam ter sido: como poderia duvidar que da minha imaginação não pudessem surgir todos esses corsários, todos os mensageiros do czar, todos esses garotos, um pouco mais jovens que eu, que remavam o dia inteiro sobre uma barcaça ao longo dos grandes rios americanos? Pendurado no braço do banco como em uma cela fantasiosa, a princípio não escutei os passos leves que, depois de correr sobre o cascalho do jardim, paravam nas minhas costas. Era Amilamia e eu não saberia quanto tempo ela havia me acompanhado em silêncio se seu espírito travesso, certa tarde, não tivesse optado por me fazer cócegas na orelha com os ramos de dente de leão que assoprava sobre mim com seus lábios inchados e a testa franzida.
Perguntou meu nome e, depois de refletir sobre ele com o rosto muito sério, me disse o seu com um sorriso, nem muito inocente, nem muito ensaiado. Logo soube que Amilamia havia encontrado, por assim dizer, uma expressão intermediária entre a ingenuidade de seus anos e aquela mímica adulta que as crianças bem educadas devem conhecer, sobretudo para os momentos solenes da apresentação e da despedida. A formalidade de Amilamia era um dom de sua natureza, enquanto que seus momentos de espontaneidade, em contraste, pareciam aprendidos. Quero lembrar-me dela, tarde após tarde, numa sucessão de imagens fixas que somadas formam Amilamia inteira. E fico surpreso por não poder pensar nela como realmente foi ou como de verdade se movia, leve, interrogativa, olhando de um lado e do outro sem parar. Devo recordar de forma estática para sempre, como em um álbum. Amilamia de longe, um ponto no lugar onde a colina caía, um lago de trevos até o prado plano onde eu lia sentado sobre o banco: um ponto de sombra e sol fluidos e uma mão que me saúda desde lá de cima. Amilamia fixa em sua corrida colina abaixo, com a saia branca rodada e a calcinha de florzinha apertada por ligas ao redor das pernas, com a boca aberta e os olhos entreabertos porque a corrida agitava o ar e a garota chorava por gosto. Amilamia sentada debaixo dos eucaliptos, fingindo choro para que eu me aproximasse. Amilamia de bruços com uma flor entre as mãos: as pétalas de um amento que, descobri mais tarde, não cresciam nesse jardim, mas em outra parte, talvez no jardim da casa de Amilamia, pois o único bolso de seu avental azul xadrez vinha sempre cheio dessas flores brancas. Amilamia me vendo ler, parada com as duas mãos na viga do banco verde, indagando com os olhos cinza: lembro que nunca perguntou o que eu lia, como se pudesse adivinhar pelos meus olhos as imagens que nasciam das páginas. Amilamia rindo com prazer quando eu a levantava pela cintura e a fazia girar sobre minha cabeça e ela parecia descobrir outra perspectiva do mundo nesse voo lento. Amilamia me dando as costas e se despedindo com o braço no alto e os dedos chacoalhando. E Amilamia nas mil posturas que ficava ao redor do meu banco: pendurada de cabeça, com as pernas para o ar e a calcinha estufada; sentada sobre o cascalho, com as pernas cruzadas e o queixo apoiado; deitada sobre o pasto, exibindo o umbigo ao sol; tecendo ramos de árvores, desenhando animais na lama com uma vara, lambendo as vigas do banco, escondida debaixo dele, quietinha quebrando as cascas soltas dos troncos velhos, olhando fixamente o horizonte para além da colina, cantarolando com os olhos fechados, imitando as vozes dos pássaros, cachorros, gatos, galinhas, cavalos.
Tudo para mim e, no entanto, para nada. Tudo isso que recordo era sua maneira de estar comigo, mas também sua maneira de estar sozinha no parque. Sim; talvez a recorde de forma fragmentada porque minha leitura se alternava com a contemplação da menina bochechuda, de cabelos lisos e mutáveis com os reflexos da luz: hora amarelado hora de um castanho queimado. E eu só penso que Amilamia, nesse momento, estabelecia o outro ponto de apoio para minha vida, o qual criava a tensão entre minha própria infância inacabada e o mundo livre, a terra prometida que começava a ser minha pela leitura.
Então não. Então sonhava com as mulheres dos meus livros, com as fêmeas – a palavra me transtornava – que assumiam o disfarce da Rainha para comprar o colar em segredo, com as invenções mitológicas – metade seres conhecidos, metade salamandras de peito branco e ventre úmido – que esperavam os monarcas em seus leitos. E assim, sem perceber, passei da indiferença com minha companhia infantil a uma compreensão da graça e da compostura da menina, e assim a um repúdio impensado dessa presença inútil. Irritava, a mim que tinha catorze anos, essa menina de sete que não era, ainda, a memória e sua nostalgia, mas um passado e sua atualidade. Havia deixado me levar por uma fraqueza. Juntos tínhamos corrido, de mão dadas, pelo campo. Juntos tínhamos sacudido os pinheiros e recolhido as pinhas que Amilamia guardava com felicidade no bolso do avental. Juntos tínhamos feito barcos de papel para que pudéssemos segui-los, entusiasmados, pela borda do canal de irrigação. E essa tarde, quando andamos juntos pela colina, em meio a gritos de alegria, e juntos caímos aos seus pés, Amilamia sobre meu peito, eu com o cabelo da menina em meus lábios, e senti seu hálito na minha orelha e seus bracinhos grudentos de doce ao redor de meu pescoço, afastei com raiva seus braços e deixei que ela caísse no chão. Amilamia chorou, acariciando seus joelhos e o cotovelo, e eu voltei para o meu banco. Logo Amilamia se foi e voltou no dia seguinte, me entregou o papel sem dizer uma palavra e se perdeu, cantarolando, pelo bosque. Fiquei em dúvida se rasgaria o cartão ou o guardaria nas páginas do livro. As tardes da granja. Até minhas leituras estavam se infantilizando ao lado de Amilamia. Ela não voltou ao parque. Eu, em poucos dias, saí de férias e depois voltei às tarefas do primeiro ano do segundo grau.

II

E agora, quase repelindo a imagem estranha sem ser fantástica e, por ser real, é mais dolorosa, regresso a esse parque esquecido e, parado diante da alameda de pinheiros e eucaliptos, me dou conta da pequenez desse bosque, que recordo ter me empenhado em desenhar com uma amplitude que pudesse conter todas as ondas da imaginação. Aqui tinham nascido, falado e morrido Strogoff e Huckleberry, Milady de Winter e Genoveva de Brabante: em um pequeno jardim rodeado por grades mofadas, plantado com escassas árvores velhas e descuidadas, enfeitado apenas com um banco de cimento que imita madeira e que me obriga a pensar que meu belo banco de ferro fundido, pintado de verde, nunca existiu ou era parte do meu sistemático delírio retrospectivo. E a colina… Como posso crer que era isso a elevação que Amilamia descia e subia durante seus passeios diários, a ladeira alta por onde rodávamos juntos? Apenas uma elevação de pastagem parda, sem o relevo que a minha imaginação se empenhava em dar.
Me busca aqui como tá no dezenho. Então teria que cruzar o jardim, deixar o bosque para trás, descer com três passos largos uma elevação, atravessar esse breve campo de avelãs – certamente onde a menina colhia as pétalas brancas-, abrir a grade que range, e de repente recordar, saber, me encontrar na rua, me dar conta de que todas aquelas tardes da adolescência, como por milagre, tinham conseguido parar as batidas da cidade, anular essa onda de apitos, badaladas, vozes, choros, motores, rádios, súplicas: qual era o verdadeiro fascínio: o jardim silencioso ou a cidade febril? Espero a mudança das luzes e me dirijo para a outra calçada sem deixar de olhar a íris vermelha que detém o trânsito. Consulto o papelzinho de Amilamia. Na verdade, esse mapa rudimentar é o verdadeiro fascínio no momento em que vivo, e só pensar sobre isso me alarma. Minha vida, depois das tardes perdidas dos catorze anos, se viu obrigada a tomar os rumos dos estudos e agora, aos vinte e nove, devidamente diplomado, dono de um escritório, com salário modesto assegurado, ainda solteiro, sem família para manter, um pouco cansado por só sair com secretárias, feliz com algum passeio eventual ao campo ou à praia, precisava de uma atração principal como as que me ofereciam meus livros, meu parque e Amilamia.

Percorro a rua deste bairro chato e cinza. As casas térreas se sucedem de forma monótona, com suas janelas compridas com grades e com seus portões com pinturas descascadas. Apenas o ruído de alguns trabalhadores rompe a uniformidade do conjunto. O rangido de um afiador aqui, o martelo de um sapateiro ali. Nas ruas laterais fechadas, brincam os meninos do bairro. A música de um realejo chega aos meus ouvidos, misturada com as vozes das cirandas de crianças. Eu me detenho um instante ao vê-los, com a sensação, também fugaz, de que entre esse grupo de crianças estaria Amilamia, mostrando suas calcinhas floridas, pendurada pelas pernas em uma sacada, afeita sempre à suas extravagâncias acrobáticas, com o bolso do avental cheio de pétalas brancas. Sorrio e pela primeira vez quero imaginar a senhorita de vinte e dois anos que, se ainda viver no endereço que me deu, irá rir das minhas recordações ou terá se esquecido das tarde passadas no jardim.
A casa é idêntica às outras. O portão, duas janelas com grades, com as persianas fechadas. Uma casa térrea, rodeada por uma falsa grade neoclássica que deve ocultar os mistérios do terraço: a roupa pendurada, as cisternas de água, o quarto de empregados, o curral. Antes de tocar a campainha, quero me livrar de qualquer ilusão. Amilamia não vive mais aqui. Por que iria permanecer quinze anos na mesma casa? Além disso, apesar de sua independência e solidão precoces, parecia uma menina bem educada, bem cuidada, e esse bairro já não é elegante; os pais de Amilamia, sem dúvida, se mudaram. Mas talvez os novos inquilinos saibam para onde.
Toco a campainha e espero. Toco outra vez. Essa é a outra possibilidade: que ninguém esteja em casa. E eu? Sentirei novamente a necessidade de procurar minha amiguinha? Não, porque já não será possível abrir um livro da minha adolescência e encontrar, por acaso, o cartão de Amilamia. Regressaria à rotina, esqueceria o momento que só importava por sua surpresa fugaz.
Toco outra vez. Aproximo a orelha do portão e me surpreendo: uma respiração barulhenta e entrecortada se deixa escutar do outro lado; o sopro pesado, acompanhado por um odor desagradável de tabaco velho, passa pelas tábuas rachadas do saguão
-Boa tarde. Poderia me dizer…
Ao escutar minha voz, a pessoa sai com passos pesados e inseguros. Toco de novo a campainha, desta vez gritando:
-Olha! Abre! O que foi? Não está ouvindo?
Não tenho resposta. Continuo tocando a campainha, sem resultados. Eu me afasto do portão, sem afastar os olhos das pequenas grades, como se a distância pudesse me dar perspectiva e me deixasse entrar. Com toda a atenção fixa nessa porta condenada, atravesso a rua caminhando de costas; um grito agudo me salva a tempo, seguido de um apito prolongado e forte, enquanto eu, confuso, procuro pela pessoa cuja voz acaba de me salvar, só vejo o automóvel que se afasta pela rua e, me abraço a um poste de luz, a um amparo que, mais que segurança, me oferece um ponto de apoio para a passagem rápida do sangue gelado com a pele quente, suada. Olho para a casa que foi, era, devia ser de Amilamia. Lá, atrás da cerca, como eu já sabia, alguém agita a roupa pendurada. Não sei o que há além disso: camisolas, pijamas, blusas, não sei; eu vejo esse pequeno avental azul xadrez, esticado, preso com prendedores no varal que balança entre uma barra de ferro e um prego do muro branco do terraço.

III

No cartório de registro de propriedade me disseram que esse terreno está em nome de um senhor Valdívia, que aluga a casa. Para quem? Isso não se sabe. Quem é Valdívia? Declarou ser comerciante. Onde vive? Quem é ele? Perguntei para a senhora, com uma curiosidade presunçosa. Eu não soube me apresentar de forma calma segura. A esperança não me aliviou da fadiga nervosa. Valdívia. Saio do cartório e até o sol é uma ofensa. Associo a repugnância que me provoca o sol denso e peneirado pelas nuvens baixas – por isso mais intenso – com o desejo de voltar ao parque sombreado e úmido. Não, não é mais que o desejo de saber se Amilamia vive nessa casa e por que não me deixam entrar. Mas o que devo evitar, o quanto antes, é essa ideia absurda que não me deixou fechar os olhos durante a noite. Ter visto o avental secando no terraço, o mesmo em cujo bolso guardava as flores, e crer que nessa casa vivia uma menina de sete anos que eu havia conhecido catorze ou quinze anos antes. Teria uma filhinha. Sim. Amilamia, aos vinte e oito anos, era mãe de uma menina, que talvez se vestisse igual, se parecesse com ela, repetisse as mesmas brincadeiras, quem sabe, fosse ao mesmo parque. E voltando mais uma vez ao portão da casa. Toco a campainha e espero a respiração aguda do outro lado da porta. Eu me enganei. Abre a porta uma mulher que não teria mais de cinquenta anos. Mas, coberta por um xale, vestida de negro e com sapatos de salto baixo, sem maquiagem, com o cabelo esticado até a nuca, grisalho, parece ter abandonado toda alegria ou desculpa da juventude e me observa com olhos quase cruéis de tão indiferentes.
-O que deseja?
-O senhor Valdívia me mandou. Tusso e passo a mão pelo o cabelo. Deveria ter pego meu caderno no escritório. Me dou conta de que sem ele não posso interpretar bem o meu papel.
-Valdívia? -A mulher me interroga sem se alarmar; sem interesse.
-Sim. O dono da casa.
Uma coisa é certa: a mulher não demonstrará nada em seu rosto. Ela me olha impávida.
-Ah, sim. O dono da casa.
-Posso?
Acho que nas comédias ruins, o viajante coloca o pé na frente para impedir que fechem a porta no seu nariz. Faço isso, mas a senhora se afasta e com um gesto de mão me convida para entrar no que devia ser um depósito. Ao lado há uma porta de vidro e madeira descascada. Caminho até ela sobre os azulejos do pátio de entrada, e volto a perguntar, me virando para a senhora, que me segue com passos curtos:
-Por aqui?
A senhora consente e, pela primeira vez, observo que em suas mãos brancas carrega um terço, que ela mexe sem parar. Não via esses velhos rosários desde minha infância e quero fazer um comentário, mas a maneira brusca e direta com que a senhora abre a porta me impede de começar uma conversa gratuita. Entramos em um recinto comprido e estreito. A senhora se apressa em abrir as persianas, mas o recinto permanece ensombrecido por quatro plantas perenes que crescem em vasos de porcelana e vidro incrustado. Só há na sala um velho sofá de encosto alto, coberto de vime e uma cadeira de balanço. Mas não são a falta de móveis ou as plantas que me chamam mais a atenção. A senhora me convida a sentar no sofá antes que ela faça o mesmo na cadeira de balanço.
Ao meu lado, sobre o vime, há uma revista aberta.
-O senhor Valdívia se desculpa por não ter vindo pessoalmente.
A senhora se balança na cadeira, sem piscar. Olho de relance a revista de quadrinhos cômicos. -Ele manda lembranças e…
Eu me detenho, esperando uma reação da mulher. Ela continua se balançando. A revista está rabiscada com um lápis vermelho.
-… e pede para informar que está pensando em contatá-la durante alguns dias… Meus olhos procuram rapidamente.
-… deve ser feita uma nova avaliação da casa para o cadastro. Parece que não é avaliada desde muito tempo… Quanto tempo vocês estão morando aqui…?
Sim, esse lápis labial pela metade está jogado debaixo do assento. E se a senhora sorri, faz isso com as mãos lentas que acariciam o terço: ali sinto, por um instante, uma zombaria rápida que não chega a afetar suas feições.
Nem dessa vez me responde. -…pelo menos quinze anos, não é?
Não confirma. Não nega. E em seus lábios pálidos e finos não há o menor sinal de pintura.
-… a senhora, seu marido e …
Olha fixamente para mim, sem variar a expressão, quase me desafiando a continuar. Permanecemos um instante em silêncio, ela brincando com o rosário, eu inclinado para frente, com as mãos sobre os joelhos. Eu me levanto.
– Então, voltarei esta mesma tarde com meus papéis.
A senhora consente enquanto, em silêncio recolhe o lápis labial, pega a revista em quadrinhos e os esconde entre as dobras do xale.

IV

A cena não mudou. Esta tarde, enquanto eu escrevo cifras imaginárias em um caderno e finjo interesse em estabelecer a qualidade das tábuas opacas do piso e a extensão do lugar, a senhora se balança e aperta com a ponta dos dedos as três dezenas do rosário. Suspiro ao terminar o suposto inventário da sala e peço para irmos a outros lugares da casa. A senhora se ajeita, apoiando os braços compridos e negros sobre o assento da cadeira de balanço, arrumando o xale nas costas estreitas e ossudas.
Ela abre a porta de vidro opaco e entramos em uma sala de jantar um pouco mais mobiliada. Mas a mesa de pernas de tubo, acompanhada de quatro cadeiras de níquel e espuma forrada sequer possui um odor que seja diferente dos móveis da sala.
A outra janela com grades, com as persianas fechadas, deve iluminar em certos momentos essa sala de jantar de paredes vazias, sem cômodas nem estantes. Sobre a mesa há apenas uma fruteira de plástico com um cacho de uvas escuras, dois pêssegos e uma coroa barulhenta de moscas. A senhora, com os braços cruzados e o rosto sem expressões, para trás de mim. Eu me atrevo a romper a ordem da visita: é evidente que os cômodos comuns da casa não vão dizer nada sobre o que quero saber.
-Não poderíamos subir até o telhado? – pergunto. Creio que é a melhor maneira de cobrir a superfície total.
A senhora olha para mim com um lampejo fino e contrastante, talvez por efeito da penumbra da sala de jantar.
-Para quê? – disse enfim. A extensão o senhor… já sabe bem. Valdívia.
E essas pausas, uma depois da outra, depois do nome do proprietário, são os primeiros indícios que, realmente, perturbam a senhora e a obrigam, em defesa própria, a recorrer a certa ironia.
-Não sei se sabe – faço um esforço para sorrir. Talvez eu preferisse ir de cima para baixo… – meu sorriso falso vai derretendo – e não de baixo para cima.
-O senhor seguirá minhas indicações – disse a senhora com os braços cruzados sobre o peito e a cruz de prata sobre o ventre escuro.
Antes de dar um sorriso sem graça, me obrigo a pensar que naquela penumbra meus gestos são inúteis, sem significado algum. Abro com um rangido da capa do caderno e continuo anotando com a maior velocidade possível, sem desviar o olhar, os números e apreciações dessa tarefa cuja ficção – diz o rubor do meu rosto e confirma a minha língua seca – não engana ninguém. E ao preencher a página quadriculada com sinais absurdos de raízes quadradas e fórmulas algébricas, me pergunto que coisa me impede de ir direto ao assunto, perguntar por Amilamia e sair daqui com uma resposta satisfatória. Nada. E tenho a certeza de que por esse caminho, mesmo que obtivesse uma resposta, não seria a verdade. Minha magra e silenciosa acompanhante tem uma forma que na rua eu não pararia para olhar, mas nessa casa de mobiliário cafona e habitantes ausentes, deixa de ser um rosto anônimo da cidade para se converter em um lugar de mistério tal é esse paradoxo; e, se as lembranças de Amilamia despertaram outra vez em mim o apetite pela imaginação, seguirei as regras de seu jogo, manterei as aparências e não descansarei até encontrar a resposta – talvez sempre clara, imediata e evidente – através dos inesperados véus que a senhora do rosário pendura em meu caminho. Ofereço a minha relutante anfitriã uma estranheza gratuita?
Se é assim, somente aproveitarei mais dos labirintos de minha invenção. E as moscas zumbem ao redor da fruteira e pousam sobre esse ponto ferido do pêssego, esse pedaço mordido – me aproximo com o pretexto de anotar alguma coisa – por uns dentinhos que deixaram sua marca na pele aveludada e na polpa ocre da fruta. Não olho para onde está a senhora. Finjo que continuo anotando. A fruta parece que foi mordida, mas não foi tocada. Me inclino para ver melhor, apoio as mãos sobre a mesa, mexo os lábios como se quisesse repetir o ato de morder sem tocar. Abaixo os olhos e vejo perto dos meus pés outra marca: a de duas rodas que parecem ser de bicicleta, duas tiras de borracha sobre o piso de madeira pintada que chegam até a beirada da mesa e se afastam, cada vez mais fracos pelo piso, até onde está a senhora…
Fecho meu livro de notas.
– Continuemos, senhora.
Ao olhar para ela, a encontro de pé com as mãos apoiadas sobre o encosto de uma cadeira. Diante dela, sentado, tosse a fumaça de um cigarro preto um homem de costas carregadas e olhar invisível: os olhos estão escondidos por essas pálpebras enrugadas, inchadas, grossas e penduradas como um pescoço de tartaruga velha, que apesar de tudo parece seguir meus movimentos. As bochechas mal barbeadas, partidas por mil sulcos cinza, se penduram nas maçãs do rosto salientes e as mãos esverdeadas estão escondidas entre as axilas: veste uma camisa grosseira, azul e seu cabelo revolto se assemelha, por suas ondas, ao fundo de um barco coberto de caramujos. Não se move e o sinal real de sua existência é esse fôlego difícil (como se a respiração devesse vencer os obstáculos de uma ou outra comporta de muco, irritação, desgaste) que eu já havia escutado entre as brechas do saguão.
De forma ridícula murmurou: -Boa tarde… – e me disponho a esquecer tudo: o mistério, Amilamia, a avalia, as pistas. A aparição desse lobo asmático justifica uma fuga rápida. Repito “boa tarde”, agora em tom de despedida. A máscara da tartaruga se desfaz em um sorriso repugnante: cada poro dessa carne parece fabricado de borracha quebradiça, de uma capa pintada e apodrecida. O braço se estica e me detém.
-Valdívia morreu faz quatro anos – diz o homem com a voz sufocada, situada nas entranhas e não na laringe: uma voz aguda e fraca.
Segurado por essa garra forte, quase dolorosa, digo para mim que é inútil fingir. Os rostos de cera e borracha que me observam não dizem nada e por isso posso, apesar de tudo, fingir uma última vez, inventar que falo comigo mesmo quando digo:
-Amilamia…
Sim: ninguém irá mais fingir. O punho que aperta meu braço confirma sua força somente por um instante, em seguida afrouxa e finalmente cai, fraco e tremendo, antes de levantar-se e pegar a mão de cera que o tocava no ombro: a senhora, perplexa pela primeira vez, olha para mim com os olhos de uma ave machucada e chora com um gemido seco que não consegue segurar o desabamento de suas feições. Os monstros de minha invenção, de repente, são dois velhos solitários, feridos, que só podem se conformar quando unem suas mãos estremecidas, o que me deixa com vergonha. A fantasia me trouxe até essa sala de jantar sem nada para profanar a intimidade e o segredo de dois seres expulsos da vida por algo que eu não tinha o direito de compartilhar. Nunca me menosprezei tanto. Nunca me faltaram palavras de maneira tão tosca. Qualquer gesto é em vão: vou me aproximar, vou tocá-los, vou acariciar a cabeça da senhora, vou pedir desculpas pela minha intromissão? Guardo o livro de notas no bolso do paletó. Jogo para o esquecimento todas as pistas da minha história policial: a revista de desenhos, o lápis labial, a fruta mordida, as marcas de bicicleta, o avental azul xadrez… Decido sair desta casa sem dizer nada. O velho, atrás das pálpebras grossas, deve ter fixado o olhar em mim. A respiração de apito me diz:
-O senhor a conheceu?
Esse passado tão natural, que eles devem usar todos os dias, destrói minhas ilusões. Ali está a resposta. O senhor a conheceu. Quantos anos? Quantos anos teria vivido o mundo sem Amilamia, assassinada primeiro pelo meu esquecimento, ressuscitada ontem, por uma triste memória impotente? Quando seus olhos cinza e sérios deixaram de me assombrar com o deleite de um jardim sempre solitário? Quando esses lábios de fazer biquinho e de afinar naquela seriedade cerimoniosa com a qual, agora me dou conta, Amilamia descobria e entregava as coisas de uma vida que, por acaso, intuía fugaz.
-Sim, brincamos juntos no parque. Faz muito tempo.
-Que idade ela tinha? – disse o velho, com a voz ainda mais apagada.
-Tinha sete anos. Sim, não mais que sete.
A voz da mulher se levanta, junto com os braços que parecem implorar:
-Como era, senhor? Diga como ela era, por favor…
Fecho os olhos. Amilamia também é minha recordação. Só poderia compará-la com as coisas que ela tocava, trazia e descobria no parque. Sim. Agora a vejo descendo pela colina. Não está certo ser apenas uma elevação de pastagem. Era uma colina de grama e Amilamia havia traçado um caminho com suas idas e vindas desde o alto até embaixo, acompanhada pela música, sim, a música dos meus olhos, as pinturas do meu olfato, os sabores dos meus olvidos, os odores do meu tato… minha alucinação… estão escutando? descia saudando, vestida de branco, com um avental azul xadrez… aquele que vocês têm pendurado no terraço…
Eles me tomam pelos braços e não abro os olhos.
-Como ela era, senhor?
-Tinha os olhos cinza e a cor do cabelo mudava com os reflexos do sol e a sombra das árvores.
Eles me conduzem suavemente, os dois; escuto a respiração do homem, o golpe da cruz do rosário contra o corpo da mulher.
-Diga, por favor…
-O ar fazia com que chorasse enquanto corria; chegava até meu banco com as bochechas prateadas por um choro alegre…
Não abro os olhos. Agora subimos. Dois, cinco, oito, nove, doze degraus. Quatro mãos guiam meu corpo.
-Como ela era, como ela era?
-Ela se sentava debaixo dos eucaliptos e fazia tranças com os ramos e fingia chorar para que eu deixasse minha leitura e ficasse perto dela.
As dobradiças rangem. O cheiro mata tudo: dispersa os demais sentidos, toma lugar como um mongol chinês no trono da minha alucinação, pesado como um cofre, insinuante como o barulho de uma seda drapeada, ornamentado como um cetro turco, opaco como uma fenda funda e perdida, brilhante como uma estrela morta. As mãos me soltam. Mais que o choro, é o tremor dos velhos o que me rodeia. Abro lentamente os olhos: deixo que o marear líquido chegue primeiro a minha córnea, em seguida, no emaranhado dos meus cílios, descobrem o aposento sufocado por essa enorme batalha de perfumes, de vapor e sereno de pétalas quase encarnadas, tal é a presença das flores que aqui, sem dúvida, possuem uma pele vivente: doçura do saramago, náusea do ácer, tumba do narciso, templo da gardênia: a pequena saleta sem janelas, iluminada pelas garras incandescentes de pesadas velas flamejantes, introduz seu rastro de cera e flores úmidas até o centro do plexo e somente ali, do sol da vida, é possível reviver para contemplar, por trás das velas e entre as flores dispersas, o acumulo de brinquedos usados, os bambolês coloridos e as bolas enrugadas, sem ar, velhas ameixas transparentes; os cavalos de madeira com as crinas destroçadas, os patins do diabo, as bonecas descabeladas e cegas, os ursos vazios de pó de serra, os patos de borracha perfurados, os cachorros devorados pelas traças, as cordas de pular roídas, os jarros de vidro repletos de doces secos, os sapatinhos gastos, o triciclo, três rodas?; não, duas; e não de bicicleta, duas rodas paralelas, abaixo, os sapatinhos de couro e lã, e a frente, ao alcance da minha mão, o pequeno caixão sobre duas gavetas azuis decoradas com flores de papel, esta vez de vida, cravos e girassóis, amapolas e tulipas, mas como aquelas, as da morte, parte de uma mistura que cola todos os elementos dessa estufa funeral em que repousa, dentro do caixão prateado e entre os lençóis de seda negra e junto ao acolchoado de tecido branco, esse rosto imóvel e sereno, emoldurado por um gorro de renda, desenhado com tintas de cor rosa: sobrancelhas que o mais leve pincel traçou, pálpebras fechadas, cílios reais, grossos, que projetam uma sombra tênue sobre as bochechas tão saudáveis como nos dias de parque.
Lábios sérios, vermelhos, quase com bico de Amilamia quando fingia estar brava para que eu me aproximasse para brincar. Mãos unidas sobre o peito. Um rosário, idêntico ao da mãe, estrangulando esse pescoço de massa. Mortalha branca e pequena de um corpo jovem, limpo, dócil.
Os velhos estão fincados no chão, soluçando.
Eu estico a mão e roço com os dedos o rosto de minha amiga. Sinto o frio dessas feições desenhadas, da boneca-rainha que preside as solenidades desta câmara real da morte. Porcelana, massa e algodão. Amilamia não esquece seu amiquinho e me busca aqui como tá no dezenho.
Separo os dedos do falso cadáver. Minhas digitais marcam a pele da boneca.
A náusea se insinua em meu estômago, depósito da fumaça das velas e da peste do ácer no quarto fechado. Dou as costas ao túmulo de Amilamia. A mão da senhora toca meu braço. Seus olhos irritados não fazem tremer a voz apagada.
-Não volte, senhor. Se gostava dela de verdade, não volte mais.
Toco a mão da mãe de Amilamia, vejo com os olhos mareados a cabeça do velho, afundada entre seus joelhos, e saio do recinto para a escada, para a sala, para o pátio, para a rua.

V

Se não um ano, se passaram nove ou dez meses. A memória daquela idolatria deixou de me espantar. Perdi o odor das flores e a imagem da boneca gelada. A verdadeira Amilamia já voltou às minhas recordações e me senti, se não contente, são outra vez: o parque, a menina viva, minhas horas de leitura adolescente venceram os espectros de um culto doentio. A imagem da vida é mais poderosa que a outra. Digo que viverei para sempre com minha verdadeira Amilamia, vencedora da caricatura da morte. E um dia me atrevo a rever aquele caderno de folhas quadriculadas onde escrevi os dados falsos da avaliação. E de suas páginas, outra vez, cai o cartão de Amilamia com sua terrível caligrafia infantil e seu plano de ir do parque para casa. Sorrio ao recolhê-lo. Mordo uma das pontas pensando que os pobres velhos, apesar de tudo, aceitariam esse presente.
Ponho o casaco e dou o nó na gravata, pensando. Por que não visitá-los e oferecer-lhes esse papel com a letra da filha?
Eu me aproximo, correndo, da casa térrea. A chuva começa a cair em cotas grandes e separadas que fazem surgir da terra, com uma rapidez mágica, esse odor de benção molhada que parece remover o húmus e precipitar as fermentações de tudo o que está com a raiz no pó.
Toco a campainha. O aguaceiro fica mais forte e insisto. Uma voz escandalosa grita: já vou! Espero que a figura da mãe, com seu eterno rosário, me receba. Levanto as golas do paletó. Minha roupa e meu corpo mudam de odor ao contato com a chuva. A porta se abre.
– O que você quer? Que bom que veio!
Sobre a cadeira de rodas, essa garota disforme coloca uma mão sobre um cavanhaque e sorri com uma careta que não consegue se manter. A corcova no peito deixa o vestido parecendo uma cortina no corpo: um trapo branco que, apesar de tudo, dá um ar de elegância ao avental azul xadrez. A pequena mulher tira do bolso do avental um maço de cigarros e acende com rapidez, manchando o filtro com os lábios pintados de laranja. A fumaça faz piscar seus lindos olhos cinza. Arruma os cabelos acobreados, parecendo palha, penteados como se tivesse feito permanente, sem deixar de me olhar com ar inquisitivo e desolado, mas também ansioso, medroso.
-Não, Carlos. Vai embora. Não volte mais.
E da casa ouço, ao mesmo tempo, a respiração de apito do velho cada vez mais perto:
-Onde você está? Não sabe que não pode responder às chamadas? Volta! Criatura do diabo! Quer que eu te bata outra vez?
E a água da chuva escorre pelo meu rosto, pelas minhas bochechas e as pequenas mãos assustadas derrubam sobre as palhas úmidas a revista de histórias.